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Crítica: Boots é série militar queer sobre jornada de dor, descoberta e resistência 

Série da Netflix transforma a rigidez dos fuzileiros em palco de amadurecimento queer com atuações intensas

Boots
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Em meio ao mar de dramas adolescentes e produções militares tradicionais, Boots, série recém-lançada pela Netflix, se destaca por ocupar um espaço pouco explorado: o da identidade queer dentro das forças armadas. Criada por Dustin Lance Black (roteirista de Milk e Em Nome do Céu), a série é inspirada nas memórias de Greg Cope White, autor de The Pink Marine, e acompanha Cameron Cope (Miles Heizer), um jovem gay que, nos anos 1990, decide se alistar no Corpo de Fuzileiros Navais ao lado do melhor amigo, Ray.

A princípio, Boots parece uma típica história de superação: um garoto frágil tentando provar sua força. Mas logo o tom muda. O que o roteiro entrega é um retrato emocionalmente honesto sobre o que significa se encaixar em um ambiente que exige uniformidade absoluta — e o preço que se paga para ser aceito.

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Personagens que desafiam o silêncio

Cameron é o eixo emocional da série, e Miles Heizer (de 13 Reasons Why) encontra o equilíbrio perfeito entre ingenuidade e coragem. Sua atuação ganha força justamente quando ele não diz nada — nos olhares, nos silêncios e nas pequenas humilhações do dia a dia do treinamento.

O elenco de apoio é igualmente sólido. Vera Farmiga entrega uma performance afiada e sensível como Barbara, a mãe superprotetora que, ao tentar proteger o filho, também o empurra para a dor. Já Dermot Mulroney, como o sargento Sullivan, encarna um dos personagens mais complexos da trama: um homem endurecido pelas regras, mas que guarda segredos que o tornam o espelho de Cameron.

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Direção e tom: entre o drama e a ironia

A direção alterna momentos de intensidade quase documental com respiros de humor e ternura. Há algo de Full Metal Jacket no modo como o treinamento é filmado — duro, exaustivo, claustrofóbico — mas também há ecos de Sex Education e Heartstopper na forma como a série lida com a descoberta da sexualidade.

Essa fusão de tons pode parecer irregular em alguns episódios, mas é justamente o que dá autenticidade à narrativa. Boots entende que crescer é um processo confuso, contraditório e muitas vezes doloroso.

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Masculinidade, pertencimento e identidade

Mais do que uma série sobre o exército, Boots é sobre o ato de performar quem você precisa ser para sobreviver. A masculinidade é tratada como um ritual de passagem e também como uma prisão. O treinamento serve de metáfora para o processo de autodefinição de Cameron — um espaço onde ele aprende a suportar o peso literal e simbólico do uniforme.

Há também uma crítica direta ao sistema “Don’t Ask, Don’t Tell”, política que, nos anos 1990, permitia a presença de pessoas LGBTQ+ nas forças armadas apenas se elas mantivessem silêncio sobre quem eram. Boots transforma essa norma em fantasma permanente: todos fingem não ouvir o que é óbvio, todos aprendem a calar o que dói.

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O final: dor e renascimento

O último episódio, centrado na “Crucible” — o teste final dos recrutas —, é o auge emocional da temporada. Cameron finalmente conquista o respeito dos colegas, mas paga um preço alto. A revelação de que ele é menor de idade e a visita da mãe expõem a fragilidade de sua jornada. Ainda assim, ele escolhe ficar, mostrando que ser Marine, para ele, não é apenas uma questão de carreira, mas de identidade.

A série termina com um misto de vitória e presságio: os novos fuzileiros assistem à notícia da guerra iminente, sugerindo que a maior batalha ainda está por vir.

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Veredito

Boots é, antes de tudo, uma história sobre vulnerabilidade em meio à dureza. A série evita o sentimentalismo fácil e entrega uma narrativa de amadurecimento sincera, com camadas emocionais profundas e uma direção segura. Mesmo com alguns momentos repetitivos e ritmo irregular no meio da temporada, o resultado é comovente e relevante.

É uma obra que desafia tanto os estereótipos do gênero militar quanto os da representação queer, lembrando que coragem não é ausência de medo — é aprender a existir, mesmo quando o mundo manda você se calar.

Nota: 4 de 5