
Desde que a segunda temporada de Sandman foi anunciada, havia a expectativa de como a série lidaria com a história de Wanda, personagem trans que protagoniza um dos arcos mais tocantes dos quadrinhos.
Criada em “Um Jogo de Você”, Wanda marcou uma geração ao ser representada com humanidade, coragem e contradições num cenário ainda raro para esses personagens na década de 1990.
No entanto, a adaptação para a Netflix optou por ignorar quase todo o contexto do volume original. Em vez de explorar sua narrativa completa e o impacto de suas escolhas, a série reduz Wanda a uma participação breve, sem profundidade, e remove justamente o elemento que tornava sua jornada tão potente: sua humanidade.

A importância de Wanda nos quadrinhos
Na HQ, Wanda é uma mulher trans que enfrenta transfobia de forma constante. Ainda assim, constrói uma relação de afeto e lealdade com Barbie, sendo uma das personagens mais humanas e complexas da obra.
Sua morte, cercada de dor e negação por parte da família, é suavizada apenas pelo gesto final de Barbie, que escreve “Wanda” sobre o nome de batismo em sua lápide usando o batom preferido da amiga.
Esse momento não é só sobre resolução ou consolo, e sim sobre resistência, mesmo diante da impotência. É um gesto frágil e efêmero, mas que afirma a identidade de Wanda em um mundo que insiste em apagá-la.

O apagamento da narrativa original
A série, porém, reconfigura tudo. Em vez de permitir que uma personagem humana e mortal tome para si esse gesto, transforma-o em uma ação mágica realizada por Sonho.
No lugar do batom que se apaga com a chuva, temos um feitiço permanente. Ao tirar o peso da impotência e o valor do gesto simbólico, a série dissolve a força da cena.
Ainda pior, Wanda não é desenvolvida. Sem tempo em tela, sem laços afetivos com outros personagens e sem qualquer traço de sua personalidade original, ela aparece, fala que é trans e morre.
Isso gerou uma representação esvaziada, distante da complexidade e da coragem que a obra original apresentou, mesmo trinta anos atrás.

Oportunidade desperdiçada
A adaptação não precisava seguir os quadrinhos à risca. Havia espaço para atualizar o arco, apresentar novas leituras e enriquecer a jornada da personagem com os debates atuais sobre identidades e direitos trans.
O próprio Neil Gaiman afirmou, anos depois da publicação da HQ, que reescreveria a história de forma diferente hoje, e que incluiria roteiristas trans em uma futura sala de redação.
Nada disso aconteceu. Ao invés de encarar a chance de aprofundar o arco ou incluir outras perspectivas, a série opta por um caminho superficial. O que poderia ser um dos momentos mais potentes da televisão de fantasia contemporânea acaba diluído em uma narrativa sem impacto.
Wanda, nos quadrinhos, emocionou, provocou, despertou empatia e representou um divisor de águas para leitores. Na série, é reduzida a uma nota de rodapé. E, em um momento em que os direitos trans estão sendo atacados em diversas partes do mundo, Sandman não teve coragem de assumir um papel relevante na causa.
Ao esvaziar o arco de Wanda, a série não apenas falha com a personagem, mas com a história de representação que os quadrinhos ajudaram a construir. O gesto de Barbie na HQ não era apenas por Wanda, mas por todas as pessoas trans que precisaram ser vistas e reconhecidas.