
Histórias que declaram “inspirado em fatos” costumam atrair o público pelo simples fascínio de transformar o cotidiano em suspense. Quando a revelação final parece extraída dos jornais, o impacto dobra.
Mesmo assim, a maior parte dos thrillers televisivos nasce de invenção pura, temperada por vivências dos autores. Esse híbrido de realidade e imaginação cria narrativas convincentes sem necessitar de eventos documentados.
Mentirosos, série do Prime Video, apresenta a jornada de Cadence Sinclair na tentativa de recuperar memórias perdidas após um verão trágico. Ambientada em uma ilha privada e cercada por uma família aparentemente perfeita, a história levanta a dúvida inevitável sobre sua veracidade.
A resposta direta é não. O enredo deriva do romance de 2014 assinado por E. Lockhart, e todo o arco central permanece fictício. Ainda assim, a autora costurou na trama episódios pessoais, referências literárias e observações sobre desigualdade, o que empresta senso de realidade ao drama.
Raízes na ficção
Lockhart declarou ter projetado em Cadence emoções que sentiu na juventude, como ambição e desajuste. Gat Patil, por sua vez, nasceu do período em que a escritora estudou como bolsista entre colegas de alta renda, convivência que aguçou seu olhar crítico sobre privilégio.
A escolha da protagonista sofrer com enxaquecas veio de pessoas próximas à autora que lidam com dor crônica. O recurso permite explorar como sofrimento físico distorce percepção e memória, ponto crucial para o mistério.
Influências clássicas também atravessam o texto. O conflito entre herança e poder ecoa Rei Lear, enquanto a atmosfera romântica e turbulenta lembra O Morro dos Ventos Uivantes – paralelos que Lockhart reconheceu apenas depois de concluir o manuscrito.
Gat, como voz dissonante na ilha, expõe clivagens de raça e classe. O grupo percebe a vaidade herdada dos adultos e decide confrontá‑la, gesto que culmina na tragédia mostrada tanto no livro quanto na série.
Famílias e ilhas que inspiram o cenário
Embora inexistam Sinclairs nos registros, o ambiente insular faz alusões a clãs reais. Criança, a autora navegava perto de ilhas particulares na costa de Massachusetts e imaginava quem vivia por lá. Décadas depois, usou esses contornos para criar Beechwood.
Entre os casos conhecidos, a família Forbes detém boa parte do arquipélago Elizabeth, com mansões que passam longe do olhar público. A ideia de um patriarca que dita regras ao restante do clã bebe desse tipo de dinastia, sem retratar uma específica.
Ao ancorar o suspense em temas palpáveis como abismo social, racismo sutil, disputas de herança, Mentirosos soa verídica, mesmo sendo ficção declarada. Esse casamento de fatos observados e fantasia planejada sustenta a pergunta que dá título a esta matéria.
Mentirosos está disponível no Prime Video.