Entenda

Boots: A polêmica história real por trás da série da Netflix

A produção mistura humor e crítica ao revisitar um capítulo da história militar dos EUA

Boots: A polêmica história real por trás da série da Netflix

Na juventude, muitos buscam no serviço militar um caminho de disciplina e pertencimento. No caso de Cameron Cope, protagonista de Boots, essa decisão se torna uma jornada de autodescoberta dentro de um ambiente que rejeita sua verdadeira identidade. A série da Netflix transforma essa contradição em uma comédia dramática, ambientada em uma época em que ser quem se é podia custar uma carreira e até a liberdade.

Criada por Andy Parker, a produção mergulha na rotina intensa de um campo de treinamento dos fuzileiros navais, acompanhando Cameron, um adolescente de 18 anos que decide seguir o melhor amigo, Ray, e se alistar. A decisão, tomada de forma impulsiva, o coloca diante de uma realidade rígida e repleta de preconceitos, marcada por políticas discriminatórias contra a homossexualidade dentro das forças armadas.

Inspirada em um relato real

Boa parte do enredo de Boots nasce das experiências de Greg Cope White, ex-fuzileiro naval e autor do livro The Pink Marine, que serviu de base para a adaptação. White viveu como militar nos anos 1970, quando ser gay nas forças armadas era ilegal. Ele chegou a alcançar o posto de sargento e recebeu dispensa honrosa após seis anos de serviço, mas manteve sua sexualidade em segredo até o início dos anos 1980.

Décadas depois, ao já trabalhar como roteirista e produtor de TV, White decidiu transformar sua história em livro. O autor queria oferecer uma mensagem de resiliência e esperança para jovens que sofriam com o preconceito e o bullying, temas que ele próprio enfrentou. A publicação enfrentou obstáculos antes de ganhar vida, mas acabou chamando atenção de produtores interessados em levá-la à tela.

Mesmo com a adaptação, Boots não reproduz a história de forma literal. A série toma liberdades criativas, embora mantenha elementos centrais da trajetória de White. Entre eles, a amizade com seu melhor amigo heterossexual, Dale, representada na série pela relação entre Cameron e Ray, e o impacto transformador da vida militar em sua formação pessoal.

White, que assina o roteiro e atua como coprodutor executivo, fez questão de preservar esses vínculos com sua história real. Seu envolvimento direto garantiu que a essência de seu relato permanecesse no centro da trama, dando autenticidade à ficção e conectando o público à dimensão humana de um ambiente notoriamente duro.

Um criador que quase viveu a mesma história

Andy Parker, responsável pela criação da série, também encontrou identificação imediata com o livro de White. Embora nunca tenha se tornado um fuzileiro, o roteirista chegou perto de se alistar nos anos 1990, época em que a trama se passa. Em entrevista à Rolling Stone, ele revelou que buscava provar sua masculinidade ao considerar a carreira militar, uma tentativa de esconder sua orientação sexual em um contexto social ainda conservador.

“Eu queria garantir que ninguém descobrisse que eu era gay. Pensei que entrar para os fuzileiros seria a prova definitiva de masculinidade”, contou Parker. Ele chegou a receber um recruta em casa, mas desistiu antes da matrícula. Ao ler The Pink Marine, enxergou na história de White um “caminho não percorrido” e decidiu transformá-lo em série.

Essa proximidade emocional se reflete na forma como Boots retrata os anos 1990, equilibrando humor e crítica. O período é apresentado com autenticidade, sem idealizações, e a narrativa se dedica a expor os dilemas de jovens que precisavam esconder parte de si para sobreviver em instituições hostis.

Entre o realismo e o respeito histórico

Desde o início, Parker deixou claro que não queria transformar Boots em um panfleto político, tampouco em propaganda militar. Para garantir precisão sem perder humanidade, ele contou com o apoio de consultores e veteranos da Marinha, como Nick Jones Jr. e Megan Ferrell Burke, além de especialistas que ajudaram a retratar o ambiente de treinamento com realismo.

O objetivo, segundo o criador, era mostrar o impacto psicológico e emocional das políticas discriminatórias, sem recorrer à caricatura. Em entrevista ao The New York Times, Parker explicou: “Sem virar um discurso político, queríamos mostrar o custo pessoal dessas regras. O que elas faziam com pessoas que só queriam servir ao seu país e precisavam esconder quem eram.”

Ao equilibrar drama, humor e crítica, Boots se distancia de produções militares tradicionais e oferece uma nova perspectiva sobre o tema. É uma história sobre coragem e aceitação, construída sobre experiências reais que marcaram uma geração inteira e que ainda ecoam em tempos de busca por representatividade.