A adaptação de um livro para as telas quase sempre exige cortes, reorganizações e até mudanças estruturais. Isso faz parte do processo e, quando bem executado, pode até fortalecer a narrativa visual. Porém, quando uma alteração mexe com a base emocional da protagonista, o efeito pode ser o oposto.
A Mulher na Cabine 10, novo suspense da Netflix, parecia seguir o caminho das grandes adaptações do gênero, mas acaba tropeçando justamente ao modificar um dos elementos mais importantes da história original.
Antes de chegar ao mistério central, o filme constrói um ambiente de luxo e isolamento a bordo do navio Aurora, onde um seleto grupo de convidados participa de uma viagem exclusiva. A atmosfera é ideal para um thriller: elegante por fora, instável por dentro, e é nesse cenário que a protagonista Lauren “Lo” Blacklock começa a perceber que há algo errado.
No entanto, diferente do livro, o longa altera a forma como ela chega até esse momento, e isso muda completamente a forma como o público enxerga tudo o que acontece a seguir.
A mudança que altera tudo
No livro de Ruth Ware, Lo sofre uma invasão domiciliar traumática antes da viagem. O crime nunca é resolvido e, além de gerar medo constante, abala sua confiança e aumenta sua paranoia.
Ela também admite beber com frequência e usar medicação, o que reforça sua condição de narradora potencialmente não confiável. Esse detalhe é crucial, pois a própria personagem reconhece suas falhas e o leitor passa a questionar se o que ela vê é real ou distorcido por trauma e álcool.
A Netflix remove esse evento e substitui por outro: Lo teria testemunhado um assassinato durante uma investigação jornalística. O filme até mostra alguns flashbacks, mas nunca explica o ocorrido ou suas consequências emocionais.
Sem detalhes, o trauma vira apenas uma citação vaga. A protagonista continua abalada, mas o espectador não entende por quê, o que enfraquece sua construção psicológica.
Por que isso importa?
A ausência do evento doméstico elimina a sensação de vulnerabilidade constante que define Lo no livro. Lá, ela não apenas teme o que viu, mas teme ser desacreditada por causa de seu histórico.
Isso justifica por que as pessoas no navio duvidam dela, pois ela tem fama de beber demais, está medicada e acabou de passar por um episódio traumático. Já no filme, todos simplesmente assumem que ela está instável por ter presenciado uma morte, mesmo sem conhecermos o impacto disso.
Essa mudança também afeta o suspense. No livro, nunca sabemos ao certo se Lo está realmente vendo algo ou se sua mente está pregando peças. A dúvida é parte essencial da experiência. Na adaptação, a personagem parece lúcida o tempo todo, o que elimina a ambiguidade.
A construção da personagem se torna superficial
Ao retirar esses elementos, o filme enfraquece o principal conflito interno da protagonista. Lo deixa de ser uma narradora complexa para se tornar apenas mais uma personagem que “ninguém acredita”. Sem nuances, o roteiro reduz a discussão sobre credibilidade feminina em ambientes hostis, que era um ponto forte do livro.
Além disso, a mudança diminui a conexão emocional do público com Lo. Quando não entendemos de onde vem seu medo, é mais difícil sentir sua angústia. O suspense continua funcionando em termos de ação, mas perde profundidade emocional.