Adaptação

Frankenstein: Explicamos as maiores mudanças entre o filme e o livro

Guillermo del Toro reinventa Frankenstein

Frankenstein: Explicamos as maiores mudanças entre o filme e o livro

Guillermo del Toro sempre teve uma queda por monstros. Mas ninguém esperava que sua versão de Frankenstein, agora disponível na Netflix, fosse tão emocional e pessoal.

O resultado? Uma adaptação que honra Mary Shelley sem se prender às correntes da fidelidade literal. E é aí que mora o fascínio.

Um clássico redesenhado com alma

Todo fã de terror conhece a imagem de Frankenstein criada pelo cinema, o monstro de passos lentos, olhar vazio e coração inocente. Mas quem leu o livro de Mary Shelley sabe: a Criatura original é articulada, trágica e dolorosamente humana. Del Toro decide unir esses dois mundos.

Seu filme mantém a essência do romance, o cientista obcecado e a criatura que deseja ser amada, mas muda o ponto de vista. Aqui, o filme se divide entre o relato de Victor Frankenstein (Oscar Isaac) e o da Criatura (Jacob Elordi). É como se o diretor dissesse: “os dois têm feridas que merecem ser ouvidas.”

E isso muda tudo. Afinal, o verdadeiro horror nunca foi o monstro, mas o espelho que ele oferece ao seu criador. Del Toro entende isso melhor do que ninguém, e transforma o mito em um diálogo sobre culpa, rejeição e perdão.

A estrutura que Shelley começou, Del Toro completou

Mary Shelley usou uma narrativa em camadas: um capitão ouve a história de Victor, que por sua vez narra a dor de sua criação. Del Toro atualiza essa estrutura, deixando a Criatura tomar o controle da história. É como se, enfim, o monstro ganhasse a própria voz.

A troca de narrador não é mero detalhe técnico. É um gesto de empatia, o mesmo que faltou ao cientista em sua arrogância. O resultado é uma obra que respira como algo novo, mesmo carregando ecos de 1818. E quem diria que uma história de dois séculos atrás ainda pareceria tão atual?

Além disso, o filme se passa nos anos 1850, em meio à Guerra da Crimeia, o que dá ao drama um contexto mais cruel e realista. Enquanto corpos são usados na guerra, Victor usa cadáveres para desafiar Deus. Coincidência? Nada em Frankenstein é.

O criador que virou monstro

Em outras versões, Victor Frankenstein é apenas um sonhador que foi longe demais. Aqui, ele é algo mais sombrio e mais humano. Del Toro transforma o cientista em um homem marcado por um pai abusivo (Charles Dance) e pela morte da mãe. O monstro nasce, na verdade, muito antes da experiência.

Quando a Criatura ganha vida, Victor a chama de “filho”. Mas o amor logo se transforma em ódio. A frustração toma o lugar da fascinação, e o cientista repete a violência que sofreu. É um ciclo de abuso, e o filme mostra isso com uma tristeza quase insuportável.

Ao contrário do livro, onde Victor foge apavorado, aqui ele tenta matar sua criação queimando o próprio laboratório. Uma inversão poderosa: o pai tentando destruir o filho, o homem apagando a própria humanidade. Del Toro, mais uma vez, prefere o drama à moral.

Elizabeth finalmente tem voz

Em Frankenstein de Shelley, Elizabeth (Mia Goth) é doce, obediente, quase uma figura decorativa. Em Frankenstein de Del Toro, ela é carne, pensamento e alma, interpretada com força por Mia Goth. Desta vez, ela não é noiva de Victor, mas do irmão dele, William.

Essa mudança é crucial. Elizabeth não é mais a vítima passiva, mas uma mulher curiosa, que ama a ciência e questiona o mundo. Ela é o contraponto do ego de Victor: busca entender a vida, não controlá-la. Quando cruza o caminho da Criatura, o vínculo entre eles é puro, quase maternal.

Há algo de poético nisso. A mulher que todos tratam como objeto é quem enxerga humanidade no ser que o criador desprezou. É Shelley reescrita por um homem que realmente leu Shelley e entendeu seu coração.

Um novo tipo de tragédia

Na história original, o ódio da Criatura leva à morte de todos que Victor ama. No filme, o ciclo é quebrado. A violência existe, mas o desfecho é diferente: há culpa, há perda, mas também há perdão. Victor, em seus últimos instantes, pede desculpas ao “filho”.

A Criatura, por sua vez, aceita. Ele não quer mais vingança, quer apenas existir. É uma cena que ecoa como um final alternativo para toda a história do terror moderno: o monstro, enfim, encontrando paz.

Frankenstein renasce

“Todo artista se retrata em sua obra”, escreveu Del Toro certa vez. E Frankenstein é o autor diante do espelho. O diretor vê em Victor o criador que perdeu o controle da própria criação e na Criatura, o ser sensível e rejeitado que só queria ser compreendido.

Ao contrário das versões que só imitam o livro, esta respira criatividade. A fotografia, inspirada em pintura vitoriana e luz de velas, dá ao filme uma aura quase espiritual. O resultado é uma mistura rara de horror gótico e poesia visual, algo que só Del Toro seria capaz de conceber.

Talvez o maior elogio seja este: após tantas versões, o mito de Frankenstein voltou a parecer vivo. E, ironicamente, foi o cineasta mais apaixonado por monstros que lhe devolveu a alma.

Frankenstein está disponível na Netflix.