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Crítica: O Filho de Mil Homens é afago em forma de cinema

Adaptação do livro de Valter Hugo Mãe reflete sobre solidão, afeto e o verdadeiro significado de família

O Filho de Mil Homens
O Filho de Mil Homens

Na última segunda-feira, 27, o Observatório do Cinema pode conferir, à convite da Netflix, a pré-estreia mundial de O Filho de Mil Homens, filme dirigido por Daniel Rezende e baseado no romance homônimo de Valter Hugo Mãe. 

Em uma narrativa de rara delicadeza, o filme mergulha em temas como solidão e pertencimento, com a sutileza que caracteriza a obra do autor português. Protagonizado por Rodrigo Santoro, o longa estreia em cinemas selecionados nesta quinta-feira, 30, e chega à Netflix em 19 de novembro. 

Daniel Rezende, Valter Hugo Mãe e o elenco de o Filho de Mil Homens - Foto: Izabella Nicolau
Daniel Rezende, Valter Hugo Mãe e o elenco de o Filho de Mil Homens – Foto: Izabella Nicolau

Rodrigo Santoro no auge da maturidade artística

Mais do que uma bela adaptação literária, O Filho de Mil Homens é um retrato humano profundamente sensível. Na trama, Santoro vive Crisóstomo, um pescador solitário que sonha em ser pai e encontra um novo sentido para a vida ao acolher Camilo (Miguel Martines), um jovem órfão. O encontro transforma a jornada dos dois, que formam uma relação de afeto e aprendizado fora dos moldes tradicionais de família.

A narrativa se aprofunda quando os protagonistas cruzam o caminho de Isaura (Rebeca Jamir) e Antonino (Johnny Massaro), aumentando o núcleo familiar e dando ao enredo uma dimensão de humanidade que ultrapassa o biológico. Rezende equilibra a estética contemplativa com uma carga emocional crescente, reforçada pela fotografia poética e pela trilha sonora minimalista.

Rodrigo Santoro é o centro dessa emoção. Crisóstomo é um homem de poucas palavras, mas cada silêncio carrega significado. Através do olhar e dos gestos, o ator traduz dor, esperança e ternura com naturalidade, num domínio absoluto da quietude em cena. Durante a pré-estreia global, Santoro descreveu o trabalho como “mágico e transformador”, e o público confirmou: é impossível sair ileso da história que atravessa o espectador com tanta sensibilidade.

Sua performance reflete a maturidade de um intérprete que entende o poder do não-dito. Santoro atinge um equilíbrio raro entre contenção e profundidade, provando mais uma vez por que é um dos grandes nomes do cinema brasileiro contemporâneo.

Aqui, vale também mencionar Juliana Caldas, que tem uma participação breve, mas marcante, alternando entre humor ácido e drama com naturalidade. Sua personagem, apesar de não fazer parte do nícleo de Crisóstomo, se entrelaça à relação familiar de forma a deixar claro o título do filme.

Uma fábula sobre amor e pertencimento

Com ritmo cadenciado e um olhar afetuoso sobre o que realmente significa ser família, O Filho de Mil Homens é um afago em forma de cinema. As histórias se entrelaçam de maneira singela e melancólica, e todos os personagens, marcados por perdas, traumas e rejeições, encontram no acolhimento dessa família improvável o conforto de um verdadeiro lar.

As atuações são poderosas em conjunto, criando uma harmonia singela entre os intérpretes. As cenas mais intensas, como as da juventude de Antonino (Antonio Haddad), são tratadas com grande delicadeza e resultam em momentos de emoção arrebatadora.

A construção coletiva dos personagens reforça o tom poético do filme, algo que o próprio Valter Hugo Mãe reconheceu ao afirmar: “Daniel Rezende conseguiu deixar o filme melhor do que o meu livro.”, durante a entrevista que precedeu a exibição.

Poesia em cada enquadramento

A estética do longa é outro ponto alto. Filmado em Búzios (RJ) e na Chapada Diamantina (BA), o projeto se apoia em uma fotografia deslumbrante e melancólica, que dialoga diretamente com o estado emocional dos personagens. 

A trilha sonora de Fábio Góes acompanha essa atmosfera com discrição, evocando o realismo poético característico da obra literária. Cada nota parece nascer do mesmo silêncio que move Crisóstomo, levando o espectador a navegar nesse mar de sentimentos e sensações.

O filme é lento e contemplativo, e isso está longe de ser um defeito. O ritmo dá espaço para quem assiste se envolver, observar os detalhes e compreender o peso do que não é dito. É cinema que respira, que permite pausa, e que se revela aos poucos.

Se há algo que destoa levemente, no entanto, são os artifícios de realismo fantástico herdados do livro. Embora sejam parte essencial da escrita de Valter Hugo Mãe, no filme eles soam deslocados e pouco necessários, podendo causar estranhamento a quem não conhece o universo literário do autor português.

Vale a pena assistir O Filho de Mil Homens?

O Filho de Mil Homens é um filme sobre amor em todas as suas formas. Daniel Rezende entrega uma obra de profunda sensibilidade, que traduz para a tela o lirismo e a compaixão de Valter Hugo Mãe sem perder a autenticidade cinematográfica.

Rodrigo Santoro, por sua vez, vive talvez o momento mais brilhante de sua carreira e o faz com ternura e coragem. Em tempos tão turbulentos, O Filho de Mil Homens nos lembra da força que existe na quietude e no gesto simples de amar ao outro da forma como ele é.

Nota: 8/10